domingo, 2 de novembro de 2014

Censura e regulação da mídia

Este não é o blog que você precisa ler.
A revista Veja, faltando 72h para o 2º turno das eleições de 2014, publicou uma reportagem bomba, em que o doleiro Alberto Youssef dizia que o ex-presidente Lula e a candidata Dilma Roussef sabiam, há tempos, dos problemas de corrupção da Petrobrás. A revista trouxe em suas páginas um excerto de um depoimento do doleiro, que teria sido dado à Polícia Federal dias antes. A revista chegou adiantar a distribuição da revista em dois dias, para que a mesma chegasse antes às mãos dos eleitores. Outros meios de comunicação, como a Folha, o Estado de S. Paulo, e as organizações Globo (jornal e TV) limitaram-se, nestes primeiros dias, a simplesmente noticiar a publicação da revista, sem confirmar ou negar a notícia em si.

No mesmo dia, em seu programa eleitoral e repercutindo na Internet (redes sociais, blogs oficiais e oficiosos, militância virtual) o programa da candidata foi incisivo: publicar a notícia faltando dois dias para a eleição era terrorismo eleitoral, fascismo, a revista iria ser devidamente processada. Nenhuma palavra, porém, sobre a denúncia em si – da mesma presidente que havia declarado, dias antes, que “ninguém estava acima de qualquer suspeita”. Apenas a promessa – bem menos incisiva de que a garantia de que a Veja iria ser processada – de que ela iria investigar (papel que, na verdade, a Polícia Federal já está fazendo) doesse a quem doesse (lembrando o “duela a quien duela” do Collor) e que não iria deixar pedra sobre pedra. O ex-presidente limitou-se a dizer que não lia a revista. A militância através da UJS (União da Juventude Socialista, ligada ao PCdoB), foi até a sede da Abril e, democraticamente, pichou, destruiu e colocou fogo na entrada da editora.
Eu não sei de nada.

Com Dilma já eleita, os blogs governistas propagaram uma versão que, além de o advogado do doleiro desconhecer o depoimento que implicava Lula e Dilma, no dia seguinte ao depoimento (quarta feira, portanto) o mesmo doleiro havia corrigido/ desmentido o depoimento do dia anterior, invalidando toda a reportagem da Veja – a informação teria sido retirada de uma nota do Globo. A militância virtual cuidou de propagar essa versão como verdadeira, com os dizeres “Veja mente”, “Advogado desmente Veja”, “Golpe da mídia fascista” e outras palavras de ordem, inocentando a presidente reeleita e o ex-presidente. Esta notícia também foi divulgada, com menos ímpeto, pela “mídia tradicional”.

Mas, dias depois, uma nova informação: não houve desmentido, e o advogado também negou ter desmentido – ou confirmado – a notícia da revista Veja, indicando que ele não o poderia fazer, por causa do segredo de justiça. Essa informação ecoou pouco nos meios tradicionais (já que o próprio desmentido não teve muita divulgação) e absolutamente nada nos blogs governistas.

Nestas idas e vindas da informação, da publicação, da revolta, do desmentido, da não confirmação do desmentido, sempre surge uma vontade de quem está no poder de censurar a informação – de tal jeito a que só a informação favorável a quem controla a censura possa chegar à população. Podemos chamar isso de “proteção à moral”, “preservação dos bons costumes”, “apoio à cultura nacional”, “alinhamento com os interesses do país”, “regulação ‘qualquer coisa’ da mídia” (mídia aqui quer dizer simplesmente “meios de comunicação”, mas resolveram abraçar esse estrangeirismo, fazer o quê), mas, no fundo, no fundo, é apenas a velha e nada boa censura, com um verniz de modernidade e caráter “social”.

A simples ideia de alguém decidindo o que posso e o que não posso saber me causa preocupação. Passei por parte da ditadura sabendo que os jornais tinham sido “editados” com receitas de bolo e pedaços de romances – e já sabia, na época, o que isso representava – e, é claro, ficava ainda mais curioso com o que estava sendo escondido. E recebia dos adultos a explicação de que, “se o governo não quis que nós soubéssemos, é melhor não saber mesmo.”

Uma informação como essa, é claro, publicada como foi, a 72 horas da eleição, pode mudar os resultados da mesma. Mas proibir a publicação com base na eleição não é uma justificativa. Se a mesma notícia se referisse ao candidato da oposição e a Veja deixasse de publicar porque iria “prejudicar o candidato” (e eu não estou dizendo que Veja não o faria) ela também seria acusada de “golpe” (e, desta vez, acredito, com toda razão). A obrigação do meio de comunicação é averiguar a notícia (o que foi feito) e publicá-la.

Meios de comunicação livres são importantes, e necessários para a democracia. Mas, mais importante do que isso, é o Estado não tratando a cada um dos seus cidadãos como alguém que precise de um tutor, decidindo quais notícias serão e quais não serão publicadas.

Isso não quer dizer que a mídia não deve assumir as consequências do que publica. Ao contrário: significa que ela deve ser responsável e, principalmente, responsabilizada pelo que faz. Isso se aplica tanto no caso da revista Veja ou dos blogs governistas que publicaram o “desmentido” e a chamaram de golpista – dependendo de quem tenha razão nesse caso.

E também não significa que não deve haver regras específicas para a mídia. A proteção do cidadão, de sua privacidade, de informações não verdadeiras, da imparcialidade na publicação da notícia. Imparcialidade, porém, não quer dizer que o jornalista ou comentarista não pode ter uma opinião, limitando-se a dar notícias – isso nem a Hora do Brasil ou a TV Brasil fazem. Por imparcialidade entende-se, aqui, simplesmente tentar ouvir os dois lados antes de publicar uma notícia. Mas a proteção ao cidadão também passa por ele ter direito a saber o que acontece com seus representantes, e se eles realmente o representam em suas ideias, ideologias, esperanças e costumes. Seja a notícia da Veja verdadeira ou não, os cidadãos teriam todo o direito de saber antes do voto e decidir se acreditariam nela ou não, e, com sua decisão, definir seu voto. Hoje, passada a eleição, sabemos que a maioria da população decidiu pela continuidade. Tomando ou não conhecimento da informação, acreditando ou não na veracidade dela e, mais relevante ainda, dando importância ou não aquilo que foi noticiado frente aquilo que julga importante para sua vida – sejam seus benefícios, seja sua ideologia, sejam seus medos ou esperanças.
E se a mídia não noticiasse esse tipo de coisa...

Considerando isto, a divulgação de uma suposta briga entre o candidato da oposição e sua acompanhante, anos atrás, assim como outras notícias sobre seus hábitos, foi ainda mais injusta – pois atingiu o cidadão, não o candidato – ao contrário de notícias sobre o aeroporto, que atingiam o candidato, não o cidadão.

Essas regras devem proteger o cidadão que vota, e não o alijar do processo de decisão. Deve proteger quem vai escolher o futuro do país, e não quem está se candidatando para um cargo eletivo.

Se o governo está realmente preocupado com o impacto das informações sobre o eleitorado, a única e duradoura forma de fazer isso é através da universalização da comunicação e da educação. Desta forma, o cidadão pode escolher, livremente, quais informações receber, em quais acreditar, e quais considerar em suas decisões.

..., como ficaríamos sabendo?
E há, claro, outras regulamentações que podemos considerar, que evitem expor crianças, ou fazer apologia de crimes, ou perpetuar estereótipos, ou qualquer outra coisa que nos prejudique como sociedade – mas nada que torne mais difícil o acesso do cidadão a opiniões ou fatos que ajudem em nossas decisões. Coisas como faixas de horário (na TV, rádio) para programas e propagandas, ou mesmo recomendações são bem vindas. Não deixar que um mesmo grupo controle toda a informação, da mesma forma que nos outros mercados, também é importante. Mas não mais do que fazer com que políticos (e suas famílias) não possam ter concessões.

E, falando em concessões, algo também importante. Rádios e TVs se utilizam de faixas de ondas que são reguladas e controladas pelo Estado. Para cada concessão, além do pagamento de taxas para sua utilização, deveria haver uma contrapartida para o cidadão – não para o Estado. Estes poderiam ter sua concessão retirada caso não obedecessem aos parâmetros definidos no contrato de concessão.

No caso das revistas e jornais, e da internet, não há essa concessão. Então, o que pode ser feito é simplesmente o uso das leis. E do público, que vai deixar ou continuar a consumir aquela informação.
  
Em resumo, não importa qual a roupagem que dão a censura.


Ela não é desejável ou necessária para nosso país, em quaisquer circunstâncias.

E a pior coisa sobre a censura é que ela é censura.

David Araújo

PS. uma ótima série sobre como eu acho que a imprensa poderia ser é "The Newsroom", As duas temporadas (a terceira vem por aí) tratam exatamente sobre a liberdade de imprensa, e, de forma ficcional, como a mídia poderia ajudar o cidadão a se decidir - inclusive, errando fragorosamente. 

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