domingo, 30 de novembro de 2014

Armação Ilimitada

Nem sempre a luz está no fim de um túnel.
Poucas vezes, uma fala isolada de um personagem fictício se gruda num neurônio qualquer, e fica martelando aleatoriamente, querendo meio que explicar um monte de coisas que você observa e percebe em seu universo real. E num número ainda menor de vezes essa frase fica por anos, pipocando de vez em quando na memória. Todo resto da obra pode ser esquecido, ou ficar fazendo aquelas cócegas de coisa boa no cérebro, mas a fala fica pra sempre.
A frase está me martelando faz algum tempo vem dos longínquos tempos de Armação Ilimitada, a série da Globo, de um episódio chamado "É o Fim do Mundo", que conta mais ou menos o que o título diz. O episódio é de 1986, 1987, eu acho, e assisti na estréia - o que revela tanto o quanto a fala ficou marcada quanto a minha idade :).
Para quem não conhece, a série conta as aventuras dos surfistas Juba e Lula, da namorada dos dois, Zelda Scott, e do Bacana, uma criança "adotada" pelos surfistas - como se pode ver. Bom, em resumo, o mundo está acabando, guerra, armas nucleares (o grande medo daquela época, em proporções que hoje não são muito bem compreendidas - apesar de o perigo continuar), apocalipse, invasão espacial - sério, eu não me lembro qual o motivo. E de repente, o Bacana, em meio daquela destruição toda solta a fala que fica gravada no meu cérebro pra sempre:
O nome "Armação Ilimitada" é só uma coincidência.
Não tem relação com a atual política.
- Tá certo que o mundo tinha que acabar, mas tinha de ser logo na minha vez?
Nem garanto que a frase é exatamente esta. Acredito que ela foi burilada por mim uma centena de vezes, ou a cada vez que a repeti - como qualquer boa história. Mas o sentido é o mesmo:
- Tá certo que o mundo tinha que acabar, mas tinha de ser logo na minha vez?
Nos últimos tempos, tenho escutado uma outra versão dessa frase, com um cunho eminentemente político:
- Tá certo que, uma hora ou outra, o Brasil iria ter de começar a realmente julgar, condenar e prender os corruptos. Mas tinha que ser logo na vez do meu partido?
Em resumo, um mimimi porque hoje os casos de corrupção estão vindo à tona, devido a imprensa livre, Polícia Federal e Ministério Público atuantes, etc. etc. etc. e que isso prejudica a imagem do seu partido, enquanto outros, que cometiam os mesmos crimes no passado vão sair ilesos.
Balela e falácia, claro.
-O que? Problemas na Eletrobrás também? Oba!
Mais investigação! Esse governo é supimpa!
O fim do mundo, na ficção e na política, só ocorre quando os motivos para que se chegue nesse ponto se tornem insuportáveis. Antes disso, ele dá diversos avisos, dá uma chance de se aliviar a pressão e adiar ainda mais a catástrofe. Dizer que "sempre foi assim" é querer negar que hoje a coisa atingiu níveis inimagináveis de desvios, aliados a uma fé inabalável na impunidade somados numa crença salvadora de que "fora do meu partido, não há salvação", o que justifica qualquer ação do partido - tanto pelos que realmente tinham ganhos diretos com essas ações quanto pelos que votam "criticamente', convencidos do destino messianico da sua legenda.
A defesa religiosa do partido tenta se desviar da razão, se referindo sempre ao passado: "Sempre foi assim" (ou, "já estava assim quando eu cheguei", ou, para citar outra frase marcante "Eu não fiz isso!").
Ou mesmo dizer que "agora sim, estamos investigando". Virou uma justificativa para os fiéis: o governo deixou, intencionalmente, que as coisas chegassem nesse nível para que se pudesse investigar - ou seja, até mesmo o nível de corrupção vira propaganda. O que muitos não percebem (ou abraçam o cliché de não querer perceber) é que a realidade não é "nunca houve tanta investigação de corrupção" mas sim "nunca houve tanta corrupção para investigar".
A mudança parece pequena, mas é substancial para entender o que está se passando.
E, quanto aos crimes cometidos no passado, ninguém acredita que os governos anteriores primaram pela falta de corrupção. A questão é que não se apresentam provas oficiais - e, se há provas, o governo atual as esconde com uma estratégia inédita de proteger aqueles a quem acusa - mantendo sempre a sombra da corrupção sobre os inimigos.
Então, mais uma vez, quando alguém disser:
- Tá certo que, uma hora ou outra, o Brasil iria ter de começar a realmente julgar, condenar e prender os corruptos. Mas tinha que ser logo na vez do meu partido??
A resposta é simples: tinha sim.





3 comentários:

  1. Realmente eles sempre tentam desviar o foco do que realmente esta acontecendo, no mensalão os caras são injustiçados e perseguidos políticos, agora a presidente esta tentando colocar a culpa no financiamento de campanha, quando todos estamos vendo gente tendo que devolver milhões aos cofres públicos, ou seja é o bom e velho esquema de enriquecimento ilícito e não só o desvio de dinheiro para o partido, temos que tomar cuidado com isso também.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. O que é interessante neste artigo é que há uma espécie de "reinformação" da política de "desinformação" advinda das estratégias de alienação, amplamente conhecidas desde Niccolò..

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